A gente cresce na relação com o outro.

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terça-feira, dezembro 07, 2010

"Não sou mais como era antigamente." - CORPO e envelhecimento

Retrato Cecília Meireles
in Flor de Poemas

"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por conta desta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?"



O processo de envelhecimento é continuo e progressivo.
A cada dia nos tornamos mais velhos e não nos damos conta das pequenas mudanças cotidianas.
Isto a tal ponto de um dia, enfim, levarmos um grande susto ao percebermos como não somos mais como éramos antigamente.

Platão foi um filósofo que falava da dicotomia corpo e alma. Dizia ele que o corpo era a matéria, já a alma correspondia a algo imaterial, algo de divino no homem. No pensamento platônico há uma valorização da alma em detrimento do corpo que perece.

Freud quando teoriza sobre as instâncias psíquicas e fala da existência de um EU que constitui o sujeito, apesar de falar de um EU psíquico, portanto, subjetivo e imaterial, coloca-o encarnado no corpo, não sendo possível tratar o corpo como algo sem importância ou de menor valor.
Ele diz: "O Eu é um ser corpóreo, e não só um ser superficial, ele é também a projeção de uma superfície." (Freud, 1923, T.II, p.15)
A teoria psicanalítica não fala apenas da existência de uma interioridade do sujeito, ela afirma a dimensão corpórea deste, até porque a formação do Eu se articula com o corpo, a partir dos primeiros contatos do bebê com a mãe e, posteriormente, através de suas experiências com o próprio corpo.

A imagem que temos de nosso corpo não é uma imagem real, mas imaginária.

A imagem que temos de nosso corpo é criada a partir de nosso contato com o outro e com o mundo. É uma imagem criada a partir do investimento externo em nosso corpo. O bebê ao nascer não se diferencia em relação ao outro, só a posteriori seu Eu é contruído.

"A imagem do corpo, pelo contrário, é própria a cada sujeito e está ligada a sua história. É relacional, depende especialmente da história libidinal, se apresenta como síntese das experiências relacionais do sujeito desejante e pode ser considerada como sua encarnação simbólica. É eminentemente inconsciente; memória da vivência relacional sempre dinâmica, pois estrutura-se através da relação entre sujeitos e é nela que se inscrevem as experiências relacionais (valorizantes ou não, narcisisantes ou não), que não são da mera ordem da necessidade, mas fundamentalmente do desejo." (Goldfarb, 1998, p.46)

A literatura aponta que existem dois momentos na vida onde o sujeito passa por um estranhamento em relação ao próprio corpo. O primeiro é na adolescência e o segundo na velhice.

Nas palavras de Goldfarb: "... a adolescência, em que o corpo cresce meio desproporcionado, e o sistema endócrino traz muitas novidades, mas onde fundamentalmente há a promessa de um futuro pleno de realizações. Mas quando um idoso se olha no espelho, o que este lhe devolve é uma imagem ligada a uma deteriorioração, uma imagem com a qual não se identifica. Não há júbilo nem alegria, há apenas estranheza, e ele pensa: "esse não sou eu". Novamente uma discrepância entre a imagem inconsciente do corpo e a imagem que o espelho lhe devolve." (Goldfarb, p.51)

"A imagem da velhice parece sempre estar 'fora', do outro lado, e embora saibamos que 'aquela' é a nossa imagem, nos produz uma impressão de inquietante estranheza, o apavorante ligado ao familiar. Apavorante porque a imagem do espelho não corresponde mais à imagem da memória; a imagem do espelho antecipa ou confirma a velhice, enquanto a imagem da memória quer ser uma imagem idealizada." (ibidem, p. 53)

Como é difícil perceber (e aceitar) nosso próprio envelhecimento, acontece de pessoas às vezes levarem literalmente um susto ao se olharem no espelho e perceberem as marcas do tempo em seu corpo.
Para ilustrar (e finalizar), leia o texto abaixo:

De: Mariana Frenk-Wenstein (escritora mexicana), 1995.

“Um dia a senhora NTS se viu no espelho e se assustou. A mulher do espelho não era ela. Era outra mulher. Por um instante pensou que fosse uma brincadeira do espelho, porém descartou esta idéia e correu a se olhar no grande espelho da sala. Nada. A mesma senhora. Foi no banheiro, no corredor, nos pequenos espelhinhos que carregava na sua bolsa, e nada. Aquela mesma senhora desconhecida estava lá. Decidiu sentar e fechar os olhos. Sentia vontade de fugir para um lugar bem longe onde não pudesse se encontrar com aquela pessoa. Porém era mais prudente ficar por perto, não deixá-la sozinha. Observá-la. Parou para refletir: quem poderia ser essa senhora? Talvez a que morou antes de mim neste apartamento?. Talvez a que morará aqui quando eu sair? Ou quem sabe, a mulher que eu mesma seria se minha mãe se tivesse casado com seu primeiro namorado? Ou quem sabe, a mulher que eu mesma teria gostado de ser? Lancei uma rápida olhada no espelho e decidi que não. De jeito nenhum eu teria gostado de ser essa senhora. Depois de pensar muito tempo, a senhora NTS chegou à conclusão de que todos os espelhos da casa tinham enlouquecido, agiam como atacados por uma doença misteriosa. Tentei aceitar a situação, não me preocupar mais, e simplesmente parar de me olhar no espelho. A gente pode viver muito bem sem se olhar no espelho. Guardei os pequenos espelhos de bolsa para tempos melhores, e cobri com panos os maiores. Um belo dia, quando por força do hábito estava me penteando frente ao espelho do armário, o pano caiu, e ali estava a outra me olhando, aquela desconhecida. Desconhecida? parece-me que já não tanto assim. Contemplo-a durante longos minutos. Começo a achar que tem um certo ar de família. Talvez esta dama compreenda minha situação e por pura bondade tente se adaptar a mim, a minha imagem que por tanto tempo habitou meus espelhos. Desde então , olho-me ao espelho todos os dias, a toda hora. A outra, não tenho dúvidas, se parece cada vez mais comigo. Ou eu com ela?"




*Texto escrito por Jéssica Calderon.


BIBLIOGRAFIA:
- Freud, S. "O ego e o id" (1923)
- Goldfarb, D.C. "Corpo, tempo e envelhecimento" - São Paulo: Casa do Psicólogo (1998).


Atendimento Psicológico - em Botafogo
Contato: jessicacalderon.psi@gmail.com
Jéssica Calderon - CRP: 05/39344

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